quarta-feira, 15 de junho de 2011

Olha, Marilia, as flautas dos pastores de Bocage

XI
Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre flores?
Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores.
Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folgas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurando gira:
Que alegre campo! Que amanhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,
Mais tristeza que a morte me causara.

Lira LXXXI - Nesta triste masmorra de Tomas Antonio Gonzaga

Nesta triste masmorra,
De um semivivo corpo sepultura,
Inda, Marília, adoro
A tua formosura.
Amor na minha idéia te retrata;
Busca extremoso, que eu assim resista
À dor imensa, que me cerca e mata.
Quando em meu mal pondero,
Então mais vivamente te diviso:
Vejo o teu rosto e escuto
A tua voz e riso.
Movo ligeiro para o vulto os passo:
Eu beijo a tíbia luz em vez de face,
E aperto sobre o peito em vão os braços.
Conheço a ilusão minha;
A violência da mágoa não suporto;
Foge-me a vista e caio,
Não sei se vivo ou morto.
Enternece-me Amor de estrago tanto;
Reclina-me no peito, e com mão terna
Me limpa os olhos do salgado pranto.
Depois que represento
Por largo espaço a imagem de um defunto
Movo os membros, suspiro,
E onde estou pergunto.
Conheço então que Amor me tem consigo;
Ergo a cabeça, que inda mal sustento,
E com doente voz assim lhe digo:
"Se queres ser piedoso,
"Procura o sítio em que Marília mora,
"Pinta-lhe o meu estrago,
E vê, Amor, se chora,
"Se, a lágrimas verter, se a dor a arrasta.
"Uma delas me traze sobre as penas,
E para alívio meu só isto basta."

Acaso são estes os sítios formosos (Marilia de Dirceu) de Tomas Antonio Gonzaga

Acaso são estes
Os sítios formosos.
Aonde passava
Os anos gostosos?
São estes os prados,
Aonde brincava,
Enquanto passava
O gordo rebanho,
Que Alceu me deixou?

São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Daquele penhasco
Um rio caía;
Ao som do sussurro
Que vezes dormia!
Agora não cobrem
Espumas nevadas
As pedras quebradas;
Parece que o rio
O curso voltou

São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Meus versos alegre
Aqui repetia:
O eco as palavras
Três vezes dizia,
Se chamo por ele,
Já não me responde;
Parece se esconde,
Casado de dar-me
Os ais, que lhe dou.

São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Aqui um regato
Corria sereno
Por margens cobertas
De flores, e feno:
À esquerda se erguia
Um bosque fechado,
E o tempo apressado,
Que nada respeita,
Já tudo mudou.

São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Mas como discorro?
Acaso podia
Já tudo mudar-se
No espaço de um dia?
Existem as fontes,
E os freixos copados;
Dão flores os prados,
E corre a cascata,
Que nunca secou.

São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Minha alma, que tinha
Liberta a vontade,
Agora já sente
Amor, e saudade,
Os sítios formosos me agradaram,
Ah! Não se mudaram;
Mudaram-se os olhos,
De triste que estou.

São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Tem pesado semblante, a cor é baça (Cartas Chilenas) de Tomas Antonio Gonzaga

Tem pesado semblante, a cor é baça,

o corpo de estatura um tanto esbelta,

feições compridas e olhadura feia;

tem grossas sobrancelhas, testa curta,

nariz direito e grande, fala pouco

em rouco, baixo som de mau falsete;

sem ser velho, já tem cabelo ruço,

e cobre este defeito e fria calva

à força de polvilho que lhe deita.

Ainda me parece que o estou vendo

no gordo rocinante escarranchado,

as longas calças pelo embigo atadas,

amarelo colete, e sobre tudo

vestida uma vermelha e justa farda.

Torno a ver-vos, ó montes de Claudio Manuel da Costa

Torno a ver-vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Côrte rico, e fino.

Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.

Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da cidade o lisonjeiro encanto;

Aqui descanse a louca fantasia;
E o que té agora se tornava em pranto,
Se converta em afetos de alegria.

Ornemos nossas testas com as flores de Tomas Antônio Gonzaga

Ornemos nossas testas com as flores e façamos de feno um brando leito. Prendamo-nos, Marília, em laço estreito, gozemos do prazer de sãos amores. Sobre as nossas cabeças, sem que o possam deter, o tempo corre: e para nós, o tempo que se passa, também, Marília, morre.

A grande César, cujo nome voa de Tomas Gonzaga da Costa

Alexandre, Marília, qual o rio,
Que engrossando no inverno tudo arrasa,
Na frente das coortes
Cerca, vence, abrasa
As cidades mais fortes.
Foi na glória das armas o primeiro;
Morreu na flor dos anos, e já tinha
Vencido o mundo inteiro.

Mas este bom soldado, cujo nome
Não há poder algum, que não abata,
Foi, Marília, somente
Um ditoso pirata,
Um salteador valente.
Se não tem uma fama baixa, e escura,
Foi por se pôr ao lado da injustiça
A insolente ventura.

O grande César, cujo nome voa,
À sua mesma Pátria a fé quebranta;
Na mão a espada toma,
Oprime-lhe a garganta,
Dá Senhores a Roma.
Consegue ser herói por um delito;
Se acaso não vencesse, então seria
Um vil traidor proscrito.

O ser herói, Marília, não consiste
Em queimar os Impérios: move a guerra,
Espalha o sangue humano,
E despovoa a terra
Também o mau tirano.
Consiste o ser herói em viver justo:
E tanto pode ser herói pobre,
Como o maior Augusto.

Eu é que sou herói, Marília bela,
Segundo da virtude a honrosa estrada:
Ganhei, ganhei um trono,
Ah! não manchei a espada,
Não roubei ao dono.
Ergui-o no teu peito, e nos teus braços:
E valem muito mais que o mundo inteiro
Uns tão ditosos laços.

Aos bárbaros, injustos vencedores
Atormentam remorsos, e cuidados;
Nem descansam seguros
Nos palácios cercados
De tropa, e de altos muros.
E a quantos nos não mostra a sábia história
A quem mudou o Fado em negro opróbrio
A mal ganhada glória.

Eu vivo, minha Bela, sim, eu vivo
Nos braços do descanso, e mais do gosto:
Quando estou acordado
Contemplo no teu rosto
De graças adornado:
Se durmo, logo sonho, e ali te vejo.
Ah! nem desperto, nem dormindo sobe
A mais o meu desejo.

Da anarda o rosto luzia de Tomas Antonio Gonzaga

De Anarda o rosto luzia
No vidro que o retratava,
E tão belo se ostentava,
Que animado parecia:
Mas se em asseios do dia
No rosto o quarto farol
Vê seu lustroso arrebol;
Ali pondera meu gosto
O vidro, espelho do rosto,
O rosto, espelho do Sol.

É da piedade grandeza
Nesse espelho ver-se Anarda,
Pois ufano o espelho guarda
Duplicada a gentileza:
Considera-se fineza,
Dobrando as belezas suas,
Pois contra as tristezas cruas
Dos amorosos enleios
Me repete dous recreios,
Me oferece Anardas duas.

De sorte que sendo amante
Da beleza singular,
Posso outra beleza amar
Sem tropeços de inconstante;
E sendo outra vez triunfante
Amor do peito que adora
Ua Anarda brilhadora,
Em dous rostos satisfeitos,
Se em um fogo ardia o peito,


Em dous fogos arde agora.
Porém depois, rigorosas,
Deixando o espelho lustroso,
Oh como fica queixoso,
Perdendo a cópia fermosa!
Creio pois que na amorosa
Lei o cego frechador,
Que decreta único ardor,
Não quis a imagem que inflama,
Por extinguir outra chama,
Por estorvar outro amor.


Às Lágrimas Devotas.

Magro, de olhos azuis,carão moreno de Bocage

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Oh retrato da morte, oh noite amiga de Bocage

Oh retrato da morte, oh noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha do meu pranto,
Des meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

Já se afastou de nós o inverno agreste de Bocage

Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus húmidos vapores;
A fértil Primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste:
Varrendo os ares o subtil nordeste
Os torna azuis: as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros, e Amores,
E torna o fresco Tejo a cor celeste;
Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo:
Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!

A frouxidão no amor é uma ofensa de Bocage

A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão, fervor e extremo;
Com extremo e fervor se recompensa.

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;
Em sombras a razão se me condensa.

Tu só tens gratidão, só tens brandura,
E antes que um coração pouco amoroso
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso,
Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-me cativo e não me faz ditoso.

Nascemos para amar a Humanidade de Bocage

Nascemos para amar; a humanidade

Vai tarde ou cedo aos laços da ternura:

Tu és doce atractivo, ó formusura,

Que encanta, que seduz, que persuade.



Enleia-se por gosto a liberdade;

E depois que a paixão n'alma se apura

Alguns então lhe chamam desventura,

Chamam-lhe alguns então felicidade.
Qual se abismou na lôbregas tristezas,

Qual em suaves júbilos discorre,

Com esperanças mil na ideia acesas.
Amor ou desfalece, ou pára, ou corre;

E, segundo as diversas naturezas,

Um porfia, este esquece, aquele morre.

Meu ser evaporei na lida insana de Bocage

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Quando cheios de gosto, e de alegria de Claudio Manuel da Costa

Quando cheios de gosto, e de alegria
Estes campos diviso florescentes,
Então me vêm as lágrimas ardentes
Com mais ânsia, mais dor, mais agonia.

Aquele mesmo objeto, que desvia
Do humano peito as mágoas inclementes,
Esse mesmo em imagens diferentes
Toda a minha tristeza desafia.

Se das flores a bela contextura
Esmalta o campo na melhor fragrância,
Para dar uma idéia da ventura;

Como, ó Céus, para os ver terei constância,
Se cada flor me lembra a formosura
Da bela causadora de minha ânsia?

Eu, Marilia, não fui nenhum vaqueiro de Tomas Antonio Gonzaga

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d' expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos inda não está cortado:
Os pastores, que habitam este monte,
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha,
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

Mas tendo tantos dotes da ventura,
Só apreço lhes dou, gentil Pastora,
Depois que teu afeto me segura,
Que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
De um rebanho, que cubra monte, e prado;
Porém, gentil Pastora, o teu agrado
Vale mais q'um rebanho, e mais q'um trono.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

Os teus olhos espalham luz divina,
A quem a luz do Sol em vão se atreve:
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d'ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual tesouro.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

Leve-me a sementeira muito embora
O rio sobre os campos levantado:
Acabe, acabe a peste matadora,
Sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso:
Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
Para viver feliz, Marília, basta
Que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!


Irás a divertir-te na floresta,
Sustentada, Marília, no meu braço;
Ali descansarei a quente sesta,
Dormindo um leve sono em teu regaço:
Enquanto a luta jogam os Pastores,
E emparelhados correm nas campinas,
Toucarei teus cabelos de boninas,
Nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

Depois de nos ferir a mão da morte,
Ou seja neste monte, ou noutra serra,
Nossos corpos terão, terão a sorte
De consumir os dois a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
Lerão estas palavras os Pastores:
"Quem quiser ser feliz nos seus amores,
Siga os exemplos, que nos deram estes."
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

Não cuides, Doroteu, que bandas penas(Cartas Chilenas) de Tomas Antonio Gonzaga

As brilhantes estrelas já caíam
E a vez terceira os galos já cantavam,
Quando, prezado amigo, punha o selo
Na volumosa carta, em que te conto
Do nosso imortal chefe a grande entrada;
E refletindo, então, ser quase dia,
A despir-me começo, com tal ânsia,
Que entendo que inda estava o lacre quente
Quando eu já, sobre os membros fatigados,
- Cuidadoso, estendia a grosa manta.
Não cuides, Doroteu, que brandas penas
Me formam o colchão macio e fofo;
Não cuides que é de paina a minha fronha
E que tenho lençóis de fina holanda,
- Com largas rendas sobre os crespos folhos.
Custosos pavilhões, dourados leitos
E colchas matizadas, não se encontram
Na casa mal provida de um poeta,
Aonde, há dias que o rapaz que serve
- Nem na suja cozinha acende o fogo.
Mas, nesta mesma cama, tosca e dura,
Descanso mais contente, do que dorme
Aquele, que só põe o seu cuidado
Em deixar a seus filhos o tesouro
- Que ajunta, Doroteu, com meio avara,
Furtando ao rico e não pagando ao pobre.
Aqui. . . mas onde vou, prezado amigo?
Deixemos episódios, que não servem
E vamos prosseguindo a nossa história.
- Fui deitar-me ligeiro, como disse,
E mal estendo nos lençóis o corpo,
Dou um sopro na vela, os olhos fecho
E pelos dedos rezo a muitos santos,
Por ver se chega mais depressa o sono,
- Conselho que me deram sábias velhas
já, meu bom Doroteu, o sono vinha:
Umas vezes dormindo, ressonava,
Outras vezes, rezando, inda bulia
Com os devotos beiços, quando sinto
- Passar um carro, que me abala o leito.
Assustado desperto, os olhos abro
E, conhecendo a causa que me acorda,
Um tanto impaciente o corpo viro,
Fecho os olhos de novo e cruzo os braços
- Para ver se outra vez me torna o sono
Segunda vez o sono já tornava
Quando o estrondo percebo de outro carro;
Outra vez, Doroteu, o corpo volto,
Outra vez me agasalho, mas que importa?
- Já soam dos soldados grossos berros,
Já tinem as cadeias dos forçados,
Já chiam os guindastes, já me atroam
Os golpes dos machados e martelos
E, ao pé de tanta bulha, já não posso
- Mais esperança ter de algum sossego.
Salto fora da cama, acendo a vela,
À banca vou sentar-me exasperado,
E, por ver se entretenho as longas horas,
Aparo a minha pena, o papel dobro
- E com mão, que ainda treme de cansada,
Não sei, prezado amigo, o que te escrevo.
Só sei que o que te escrevo são verdades
E que vêem muito bem ao nosso caso.
Apenas, Doroteu, o nosso chefe
- As rédeas manejou, do seu governo,
Fingir-nos intentou que tinha uma alma
Amante da virtude. Assim foi Nero.
Governou aos romanos pelas regras
Da formosa justiça, porém logo
- Trocou o cetro de ouro em mão de ferro.
Manda, pois, aos ministros lhe dêem listas
De quantos presos as cadeias guardam,
Faz a muitos soltar e aos mais alenta
De vivas, bem fundadas esperanças.
- Estranha ao subalterno, que se arroga
O poder castigar ao delinqüente
Com troncos e galés; enfim ordena
Que aos presos, que em três dias não tiverem
Assentos declarados, se abram logo
- Em nome dele, chefe, os seus assentos.
Aquele, Doroteu, que não é santo,
Mas quer fingir-se santo aos outros homens
Pratica muito mais, do que pratica
Quem segue os sãos caminhos da verdade.
- Mal se põe nas igrejas, de joelhos,
Abre os braços em cruz, a terra beija,
Entorta o seu pescoço, fecha os olhos,
Faz que chora, suspira, fere o peito,
E executa outras muitas macaquices
- Estando em parte onde o mundo as veja.
Assim o nosso chefe, que procura
Mostrar-se compassivo, não descansa
Com estas poucas obras: passa a dar-nos
Da sua compaixão maiores provas.
- Tu sabes, Doroteu, qual seja o crime
Dos soldados, que furtam aos soldados,
E sabes muito bem que pena incorram
Aqueles que viciam ouro e prata.
Agora, Doroteu, atende o como
Castiga o nosso chefe em um sujeito
Estes graves delitos, que reputa
Ainda menos do que leves faltas.
Apanha um militar aos camaradas
Do solo uma porção. Astuto e destro,
Para não se sentir o grave furto,
Mistura nos embrulhos, que lhes deixa,
Igual quantia de metal diverso.
Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto,
Sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde,
Que este Hércules não cinge a grossa pele,
Nem traz na mão robusta a forte clava,
Para guerra fazer aos torpes Cacos.
Já leste, Doroteu, a d. Quixote ?
Pois eis aqui, amigo, o seu retrato;
Mas diverso nos fins, que o doido Mancha
Forceja por vencer os maus gigantes
Que ao mundo são molestos e este chefe
Forceja por suster, no seu distrito,
Aqueles que se mostram mais velhacos.
Não pune, doce amigo, como deve,
Das sacrossantas leis a grave ofensa;
Antes, benigno, manda ao bom Matúsio
Que do seu ouro próprio se ressarça
Aos aflitos roubados toda a perda.
Já viste, Doroteu, igual desordem?
O dinheiro de um chefe, que a lei guarda,
Acode aos tristes órfãos e às viúvas;
Acode aos miseráveis, que padecem
Em duras, rotas camas e socorre,
Para que honradas sejam, as donzelas,
Porém não paga furtos, porque fiquem
Impunes os culpados, que se devem,
Para exemplo, punir com mão severa.
Envia, Doroteu, vizinho chefe
Ao nosso grande chefe outro soldado
Por vários crimes convencido e preso.
Lança-se o tal soldado, de joelhos
Aos pés do seu herói, suspira e treme,
Não nega que ferira e que matara,
Mas pede que lhe valha a mão piedosa
Que tudo pode, que ele aperta e beija.
Pergunta-lhe o bom chefe se os seus crimes
Divulgados estão e o camarada,
Com semblante já leve, lhe responde
Que suas graves culpas foram feitas
Em sítios mui distantes desta praça.
Então, então o chefe, compassivo
Manda tirar os ferros dos seus braços
a-lhe um salvo-conduto, com que possa,
Contanto que na terra não se saiba,
fazer impunemente insultos novos.
Caminha, Doroteu, à força um negro
Conforme as leis do reino bem julgado.
Tu sabes, Doroteu, que o próprio Augusto
Estas fatais sentenças não revoga
Sem um justo motivo, em que se firme
o seu perdão a causa. Também sabes
Que estas mesmas mercês se não concedem
Senão por um decreto, em que se expende
Que o sábio rei usou, por motu-próprio,
Do mais alto poder que tem o cetro.
Agora, Doroteu, atende e pasma:
Por um simples despacho, manda o chefe
Que o triste padecente se recolha.
Assenta: vale tanto, lá na corte,
Um grande El-Rei impresso, quanto vale
Em Chile, um Como pede e o seu garrancho.
Aonde, louco chefe, aonde corres
Sem tino e sem conselho? Quem te inspira
Que remitir as penas é virtude?
E, ainda a ser virtude, quem te disse
Que não é das virtudes, que só pode,
Benigna, exercitar a mão augusta?
Os chefes, bem que chefes, são vassalos
E os vassalos não têm poder supremo.
O mesmo grande Jove, que modera
O mar, a terra e o céu, não pode tudo,
Que ao justo só, se estende o seu império.
O povo, Doroteu, é como as moscas
Que correm ao lugar, aonde sentem
O derramado mel, é semelhante
Aos corvos e aos abutres, que se ajuntam
Nos ermos, onde fede a carne podre.
À vista, pois, dos fatos, que executa
O nosso grande chefe, decisivos
Da piedade que finge, a louca gente
De toda a parte corre a ver se encontra
Algum pequeno alivio à sombra dele.
Não viste, Doroteu, quando arrebenta
Ao pé de alguma ermida a fonte santa,
Que a fama logo corre e todo o povo
Concebe que ela cura as graves queixas.
Pois desta sorte entende o néscio vulgo
Que o nosso general lugar-tenente,
Em todos os delitos e demandas,
Pode de absolvição lavrar sentenças.
Não há livre, não há, não há cativo
Que ao nosso Santiago não concorra.
Todos buscam ao chefe e todos querem,
Para serem bem vistos, revestir-se
Do triste privilégio de mendigos.
Um as botas descalça, tira as meias
E põe no duro chão os pés mimosos;
Outro despe a casaca, mais a veste
E de vários molambos mal se cobre;
Este deixa crescer a ruça barba,
Com palhas de alhos se defuma aquele;
Qual as pernas emplastra e move o corpo
Metendo nos sobacos as muletas;
Qual ao torto pescoço dependura,
Despido, o braço que só cobre o lenço;
Uns, com bordão, apalpam o caminho,
Outros, um grande bando lhe apresentam
De sujas moças, a quem chamam filhas.
Já foste, Doroteu, a um convento
De padres franciscanos, quando chegam
As horas de jantar ? Passaste, acaso
Por sítio em que morreu mineiro rico,
Quando da casa sai pomposo enterro?
Pois eis aqui, amigo, bem pintada
A porta, mais a rua deste chefe
Nos dias de audiência. Oh! quem pudera
Nestes dias meter-se um breve instante,
A ver o que ali vai na grande sala!
Escusavas de ler os entremezes
Em que os sábios poetas introduzem,
Por interlocutores, chefes asnos.
Um pede, Doroteu, que lhe dispense
Casar com uma irmã da sua amásia;
Pede outro que lhe queime o mau processo,
Onde esta criminoso, por ter feito
Cumprir exatamente um seu despacho;
Diz este que os herdeiros não lhe entregam
Os bens, que lhe deixou, em testamento,
Um filho de Noé; aquele ralha
Contra os mortos,juízes, que lhe deram,
Por empenhos e peitas, a sentença
Em que toda a fazenda lhe tiraram;
Um quer que o devedor lhe pague logo;
Outro, para pagar, pertende espera;
Todos, enfim, concluem que não podem
Demandas conservar; por serem pobres
E grandes as despesas, que se fazem
Nas casas dos letrados e cartórios.
Então o grande chefe, sem demora,
Decide os casos todos que lhe ocorrem
Ou sejam de moral, ou de direito,
Ou pertençam, também, à medicina,
Sem botar, (que ainda é mais), abaixo um livro
Da sua sempre virgem livraria.
Lá vai uma sentença revogada
Que já pudera ter cabelos brancos;
Lá se manda que entreguem os ausentes
Os bens ao sucessor, que não lhes mostra
Sentença que lhe julgue a grossa herança.
A muitos, de palavra, se decreta
Que em pedir os seus bens, não mais prossigam;
A outros se concedem breves horas
Para pagarem somas que não devem.
Ah! tu, meu Senhor Pança, tu que foste
Da Baratária o chefe, não lavraste
Nem uma-só sentença tão discreta!
E que queres, amigo, que suceda?
Esperavas, acaso, um bom governo
Do nosso Fanfarrão? Tu não o viste
Em trajes de casquilho, nessa corte ?
E pode, meu amigo, de um peralta
Formar-se, de repente, um homem sério?
Carece, Doroteu, qualquer ministro
Apertados estudos, mil exames,
E pode ser o chefe onipotente
Quem não sabe escrever uma só regra
Onde, ao menos, se encontre um nome certo?
Ungiu-se, para rei do povo eleito,
A Saul, o mais santo que Deus via.
Prevaricou Saul, prevaricaram,
No governo dos povos, outros justos.
E há-de bem governar remotas terras
Aquele que não deu, em toda vida
Um exemplo de amor à sã virtude?
As letras, a justiça, a temperança
Não são, não são morgados que fizesse
A sábia natureza, para andarem.
Por sucessão nos filhos dos fidalgos.
Do cavalo andaluz, é, sim, provável
Nascer, também, um potro de esperança,
Que tenha frente aberta, largos peitos,
Que tenha alegres olhos e compridos,
Que seja, enfim, de mãos e pés calçado;
Porém de um bom ginete também pode
Um catralvo nascer, nascer um zarco.
Aquele mesmo potro, que tem todos
Os formosos sinais, que aponta o Rego,
Carece, Doroteu, correr em roda
No grande picadeiro muitos meses,
Para um e outro lado, necessita
Que o destro picador lhe ponha a sela
E que, montando nele, pouco a pouco,
O faça obedecer ao leve toque
Do duro cabeção, da branda rédea.
Dos mesmos, Doroteu... porém já toca.
Ao almoço a garrida da cadeia
Vou ver se dormir posso, enquanto duram
Estes breves instantes de sossego,
Que, sem barriga farta e sem descanso,
Não se pode escrever tão longa história.

Entram enfim na mais remota e interna(O Uruguai) de Basílio da Gama

[...]
Para se dar princípio à estranha festa,
Mais que Lindóia. Há muito lhe preparam
Todas de brancas penas revestidas
Festões de flores as gentis donzelas.
Cansados de esperar, ao seu retiro
Vão muitos impacientes a buscá-la.
Estes de crespa Tanajura aprendem
Que entrara no jardim triste e chorosa,
Sem consentir que alguém a acompanhasse.
Um frio susto corre pelas veias
De Caitetu, que deixa os seus no campo,
E a irmã por entre as sombras do arvoredo
Busca co’a vista e treme de encontrá-la.
Entram enfim na mais remota e interna
Parte de antigo bosque, escuro e negro,
Onde ao pé de uma lapa cavernosa
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada de jasmins e rosas.
Este lugar delicioso e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido,
Para morrer, a mísera Lindóia.

Lá reclinada, como que dormia,
Na branda relva e nas mimosas flores,
Tinha a face na mão, e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia e cinge
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada e irrite o monstro,
E fuja e apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caitetu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
Soltar o tiro, e vacilou três vezes
Entre a ira e o temor. Enfim sacode
O arco, e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindóia, e fere
A serpente na testa, e a boca e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açoita o campo co’a ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.

Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que amor reinava um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua,
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.

Nos olhos Caitetu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime, e a voluntária morte,
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.

Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece.
Tanto era bela no seu rosto a morte!

Indiferente admira o caso acerbo
Da estranha novidade ali trazido
O duro Balda; e os Índios, que se achavam,
Corre co’a vista, e os ânimos observa.
Quanto pode o temor! Secou-se a um tempo
Em mais de um rosto o pranto, e em mais de um peito
Morreram sufocados os suspiros.
Ficou desamparada na espessura,
E exposta às feras e às famintas aves,
Sem que alguém se atrevesse a honrar seu corpo
De poucas flores e piedosa terra.

Fastosa Egípcia, que o maior triunfo
Temeste honrar do vencedor latino,
Se desceste inda livre ao escuro reino,
Foi vaidosa talvez da imaginada
Bárbara pompa do real sepulcro.

Amável Indiana, eu te prometo
Que em breve a iníqua pátria envolta em chamas
Te sirva de urna, e que misture e leve
A tua e a sua cinza o irado vento!
[...]

"Barbaro (a bela diz) tigre e não homem de Santa Rita Durão

[...]

"Bárbaro (a bela diz), tigre e não homem... Porém o tigre, por cruel que brame, Acha forças amor que enfim o domem; Só a ti não domou, Por mais que eu te ame. Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem, Como não consumis aquele infame? Mas pagar tanto amor com tédio e asco... Ah! que corisco és tu... raio... penhasco!

[...]

Um frio susto corre pelas veias(A morte de Lindóia) de Basilio da Gama

Um frio susto corre pelas veias

De Caitutu que deixa os seus no campo;

E a irmã por entre as sombras do arvoredo

Busca com a vista, e treme de encontrá-la.

Entram enfim na mais remota, e interna

Parte de antigo bosque, escuro e negro,

Onde, ao pé duma lapa cavernosa,

Cobre uma rouca fonte, que murmura,

Curva latada e jasmins e rosas.

Este lugar delicioso e triste,

Cansada de viver, tinha escolhido

Para morrer a mísera Lindóia.

Lá reclinada, como que dormia,

Na branda relva e nas mimosas flores,

Tinha a face na mão e a mão no tronco

Dum fúnebre cipreste, que espalhava

Melancólica sombra. Mais de perto

Descobrem que se enrola no seu corpo

Verde serpente, e lhe passeia e cinge

Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.

Fogem de a ver assim sobressaltados

E param cheios de temor ao longe;

E nem se atrevem a chamá-la e temem

Que desperte assustada e irrite o monstro,

E fuja, e apresse no fugir a morte.

Porém o destro Caitutu, que treme

Do perigo da irmã, sem mais demora

Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes

Soltar o tiro, e vacilou três vezes

Entre a ira e o temor. Enfim sacode

O arco e faz voar a aguda seta,

Que toca o peito de Lindóia e fere

A serpente na testa, e a boca e os dentes

Deixou cravados no vizinho tronco.

Açoita o campo com a ligeira cauda

O irado monstro, e em tortuosos giros

Se enrosca no cipreste, e verte envolto

Em negro sangue o lívido veneno.

Leva nos braços a infeliz Lindóia

O desgraçado irmão, que ao despertá-la

Conhece, com que dor! no frio rosto

Os sinais do veneno, e vê ferido

Pelo dente sutil o brando peito.

Os olhos, em que Amor reinava, um dia,

Cheios de morte; e muda aquela língua,

Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes

Contou a larga história de seus males.

Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,

E rompe em profundíssimos suspiros,

Lendo na testa da fronteira gruta

De sua mão já trêmula gravado

O alheio crime, e a voluntária morte.

E por todas as partes repetido

O suspirado nome de Cacambo.

Inda conserva o pálido semblante

Um não sei quê de magoado, e triste,

Que os corações mais duros enternece.

Tanto era bela no seu rosto a morte!

Eu sei, Marilia, que tenho (Lira XXI) de Tomas Antonio Gonzaga

Por morto, Marília,
Aqui me reputo:
Mil vezes escuto
O som do arrastado,
E duro grilhão.
Mas, ah! que não reme,
Não treme de susto
O meu coração.

A chave lá soa
Na porta segura;
Abre-se a escura,
Infame masmorra
Da minha prisão.
Mas, ah! que não treme,
Não treme de susto
O meu coração.

Já o Torres se assenta;
Carrega-me o rosto;
Do crime suposto
Com mil artifícios
Indaga a razão.
Mas, ah! que não treme,
Não treme de susto
O meu coração.

Eu vejo, Marília,
A mil inocentes,
Nas cruzes pendentes
Por falsos delitos,
Que os homens lhes dão.
Mas, ah! que não treme,
Não treme de susto
O meu coração.

Se penso que posso
Perder o gozar-te,
E a glória de dar-te
Abraços honestos,
E beijos na mão.
Marília, já treme,
Já treme de susto
O meu coração.

Repara, Marília,
O quanto é mais forte
Ainda que a morte,
Num peito esforçado,
De amor a paixão.
Marília, já treme,
Já treme de susto
O meu coração.

Lira XXVI

Não praguejes, Marília, não praguejes
A justiceira mão, que lança os ferros;
Não traz debalde a vingadora espada;
Deve punir os erros.

Virtudes de Juiz, virtudes de homem
As mãos se deram, e em seu peito moram.
Manda prender ao Réu austera a boca,
Porém seus olhos choram.

Se à inocência denigre a vil calúnia,
Que culpa aquele tem, que aplica a pena?
Não é o Julgador, é o processo,
E a lei, quem nos condena.

Só no Averno os Juízes não recebem
Acusação, nem prova de outro humano;
Aqui todos confessam suas culpas,
Não pode haver engano.

Eu vejo as Fúrias afligindo aos tristes:
Uma o fogo chega, outra as serpes move;
Todos maldizem sim a sua estrela,
Nenhum acusa a Jove.

Eu também inda adoro ao grande Chefe,
Bem que a prisão me dá, que eu não mereço.
Qual eu sou, minha Bela, não me trata,
Trata-me qual pareço.

Quem suspira, Marília, quando pune
Ao vassalo, que julga delinqüente,
Que gosto não terá, podendo dar-lhe
As honras de inocente?

Tu vences, Barbacena, aos mesmos Titos
Nas sãs virtudes, que no peito abrigas:
Não honras tão-somente a quem premeias,
Honras a quem castigas.

Estes tristes, mal chega, são julgados (Cartas Chilenas) de Tomas Antonio Gonzaga

[...]
235 -- Vem aquele, que pôs impuros olhos
Na sua mocetona e vem o pobre,
Que não quis emprestar-lhe algum negrinho,
Para lhe ir trabalhar na roça e lavra.
Estes tristes, mal chegam, são julgados
[...]

Levando um velho avarento de Bocage

Levando um velho avarento
Uma pedrada num olho,
Pôs-se-lhe no mesmo instante
Tamanho como um repolho.

Certo doutor, não das dúzias,
Mas sim médico perfeito,
Dez moedas lhe pedia
Para o livrar do defeito.

"Dez moedas! (diz o avaro)
Meu sangue não desperdiço:
Dez moedas por um olho!
O outro dou eu por isso."

Enquanto pasta alegre o manso gado (Lira XIX) de Tomas Antonio Gonzaga

Enquanto pasta alegre o manso gado,

Minha bela Marília, nos sentemos

À sombra deste cedro levantado.

Um pouco meditemos

Na regular beleza,

Que em tudo quanto vive, nos descobre

A sábia natureza.



Atende, como aquela vaca preta

O novilho seu dos mais separa,

E o lambe, enquanto chupa a lisa teta.

Atende mais, ó cara,

Como a ruiva cadela

Suporta que lhe morda o filho o corpo,

E salte em cima dela.

Repara, como cheia de ternura

Entre as asas ao filho essa ave aquenta,

Como aquela esgravata a terra dura,



E os seus assim sustenta;

Como se encoleriza,

E salta sem receio a todo o vulto,

Que junto deles pisa.

Que gosto não terá a esposa amante,

Quando der ao filhinho o peito brando,

E refletir então no seu semblante!

Quando, Marília, quando

Disser consigo: "É esta



"De teu querido pai a mesma barba,

"A mesma boca, e testa.“

Pastores, que levais ao monte o gado de Claudio Manuel da Costa

Pastores, que levais ao monte o gado,
Vêde lá como andais por essa serra;
Que para dar contágio a toda a terra,
Basta ver se o meu rosto magoado:

Eu ando (vós me vêdes) tão pesado;
E a pastora infiel, que me faz guerra,
É a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.

Se a quereis conhecer, vinde comigo,
Vereis a formosura, que eu adoro;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo:

Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro;
Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,
Chorareis, ó pastores, o que eu choro.

Não sei, Marilia, que tenho (Lira XXI) de Tomas Antonio Gonzaga

Não sei, Marília, que tenho,
Depois que vi o teu rosto;
Pois quanto não é Marília,
Já não posso ver com gosto.
Noutra idade me alegrava,
Até quando conversava
Com o mais rude vaqueiro:
Hoje, ó Bela, me aborrece
Inda o trato lisonjeiro
Do mais discreto pastor
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de Amor?
Saio da minha cabana
Sem reparar no que faço:
Busco o sítio aonde moras,
Suspendo defronte o passo.
Fito os olhos na janela,
Aonde, Marília bela,
Tu chegas ao fim do dia;
Se alguém passa, e te saúda,
Bem que seja cortesia,
Se acende na face a cor.
Que efeitos são os que sinto?
Serão os efeitos de Amor?
Se estou, Marília, contigo,
Não tenho um leve cuidado;
Nem me lembra se são horas
De levar à fonte o gado.
Se vivo de ti distante,
Ao minuto, ao breve instante
Finge um dia o meu desgosto:
Jamais, Pastora, te vejo
Que em seu semblante composto
Não veja graça maior.
Que efeitos são os que sinto?
Serão os efeitos de Amor?
Ando já com o juízo,
Marília, tão perturbado,
Que no mesmo aberto sulco
Meto de novo o arado.
Aqui no centeio pego,
Noutra parte em vão o sego:
Se alguém comigo conversa,
Ou não respondo, ou respondo
Noutra coisa tão diversa,
Que nexo não tem menor.
Que efeitos são os que sinto?
Serão os efeitos de Amor?
Se geme o bufo agoureiro,
Só Marília me desvela,
Enche-se o peito de mágoa,
E não sei a causa dela.
Mal durmo, Marília, sonho
Que fero leão medonho
Te devora nos meus braços:
Gela-se o sangue nas veias,
E solto do sono os laços
À força da imensa dor.
Ah! que os efeitos, que sinto,
Só são efeitos de Amor.

Recreios campestres na companhia de Marilia de Bocage

Olha, Marília, as flautas dos pastores

Que bem que soam, como estão cadentes!

Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes

Os Zéfiros a brincar por entre as flores?


Vê como ali beijando-se os Amores

Incitam nossos ósculos ardentes!

Ei-las de planta em planta as inocentes,

As vagas borboletas de mil cores!


Naquele arbusto o rouxinol suspira,

Ora nas folhas a abelhinha pára,

Ora nos ares sussurrando gira:


Que alegre campo! Que manhã tão clara!

Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,

Mais tristeza que a morte me causara.

A desordem, amigo, não consiste (Cartas Chilenas) de Tomas Antonio Gonzaga

Agora, Doroteu, agora estava
Bamboando, na rede preguiçosa
E tomando, na fina porçolana,
O mate saboroso, quando escuto
De grossa artilharia o rouco estrondo.
O sangue se congela, a casa treme,
E pesada porção de estuque velho,
A violência do abalo despegada
Da barriguda esteira, faZ que eu perca
- A tigela esmaltada, que era a coisa
Que tinha, nesta casa, de algum preço.
Apenas torno em mim daquele susto,
Me lembra ser o dia em que o bom chefe,
Aos seus auxiliares, lições dava
- Da que Saxi chamou pequena guerra.
Amigo Doroteu, não sou tão néscio,
Que os avisos de Jove não conheça.
Pois não me deu a veia de poeta,
Nem me trouxe, por mares empolados,
- A Chile, para que, gostoso e mole,
Descanse o corpo na franjada rede.
Nasceu o sábio Homero entre os antigos,
Para o nome cantar, do grego Aquiles;
Para cantar, também, ao pio Enéias,
- Teve o povo romano o seu Vergílio:
Assim, para escrever os grande feitos
Que o nosso Fanfarrão obrou em Chile,
Entendo, Doroteu, que a Providência
Lançou, na culta Espannha, o teu Critilo.
- Ora pois, Doroteu, eu passo, eu passo
A cumprir, respeitoso, os meus deveres
E, já que o meu herói, agora, adestra
Esquadras belicosas, também, hoje,
Tomarei por empresa só mostrar-te
- Que ele fez, na milícia, grandes coisas.
Ha, nesta capital, um regimento
De tropa regular, a quem se daga.
Tu sabes, Doroteu, que não há corpo
Que, todo, de iguais membros se componha.
- Das ordens mais austeras, que fizeram
Os santos penitentes patriarcas,
Saíram, contra o trono rebelados,
Os infames Clementes, e saíram
Contra o dogma, os Calvinos e os Luteros;
- O mesmo Apostolado teve um Judas.
Se isto pois, Doroteu, assim sucede
Nos corpos, que se formam de escolhidos,
Que não sucederá, nos grandes corpos,
Aonde se recebam as pessoas
- Que timbre fazem, dos seus próprios vícios?
O meio, Doroteu, o forte meio
Que os chefes descobriram para terem
Os corpos que governam, em sossego,
Consiste em repartirem com mão reta
- Os prêmios e os castigos, pois que poucos
Os delitos evitam, porque prezam
A cândida virtude. Os mais dos homens
Aos vícios fogem, porque as penas temem.
Ora ouve, Doroteu, o como o chefe
- Os castigos reparte aos seus guerreiros.
Não há, não há distúrbio nesta terra,
De que mão militar não seja autora.
Chega, prezado amigo, a ousadia
De um indigno soldado a este excesso:
- Aperta, na direita, o ferro agudo
E penetra as paredes de palácio,
No meio de uma sala, aonde estavam
As duas sentinelas, que defendem,
Da casa do dossel, a nobre entrada.
- Aqui, meu Doroteu, aqui se chega
Ao camarada inerme e, pelas costas,
O deixa quase morto, a punhaladas.
Que esperas tu, agora, que eu te diga?
Que o militar conselho já se apressa?
- Que já se liga, ao poste, o delinqüente?
Que os olhos, com o lenço, já lhe cobrem?
Que a bala zunidora já lhe rompe
O peito palpitante? Que suspira?
Que lhe cai, sobre os ombros, a cabeça?
- Meu caro Doroteu, o nosso chefe
É muito compassivo, sim, bem pode
Oprimir os paisanos inocentes
Com pesadas cadeias, pode, ainda,
Ver o sangue esguichar das rotas costas
- À força dos zorragues, mas não pode
Consentir que se dê, nos seus soldados,
Por maiores insultos que cometam,
A pena inda mais leve: assim praticam
Os famosos guerreiros, que nasceram
- Para obrarem, no mundo, empresas grandes.
Ele, sim bem conhece que não há-de
Talar, com estas tropas, as campinas,
Que o céu lhe não concede a esperança
De entrar no templo augusto da Vitória,
- Coberto de poeira e negro sangue.
Mas sempre, Doroteu, as quer propicias,
Pois, inda que não cinjam as espadas,
Para cortar loureiros e carvalhos,
Que a testa lhes circulem, são aquelas
Que, prontas, executam seus mandados;
São aquelas, que infundem, nestes povos,
O medo e sujeição, com que toleram
O verem em desprezo as leis sagradas.
Conhece, Doroteu, o próprio chefe,
Que vai passando a muito a liberdade
Das fardas atrevidas, e, querendo
A tais desordens pôr remédio e freio,
Não manda que se cumpram as leis santas
Que, aos delitos, arbitram justas penas.
Manda, sim, um cartaz, aonde inova
Que, todos os domingos, na parada,
Se leia o militar regulamento.
Indigno e bruto chefe, de que serve
Que se leiam as leis, se os malfeitores,
Do que mandam, não vêem um só exemplo.
Tens visto, Doroteu, o como o chefe
Os delitos castiga; agora sabe
Da sorte que reparte, aos bons, os prêmios.
Morreu um capitão, e subiu logo,
Ao posto devoluto, um bom tenente.
Porque foi, Doroteu? seria, acaso,
Por ser tenente antigo? Ou porque tinha
Com honra militado? Não, amigo,
Foi só porque largou três mil cruzados!
Ah! não mudes a cor de teu semblante,
Prudente Maximino! Não, não mudes.
Que importa que comprasses a patente?
Se tu a merecias, a vileza
Da compra não te infama, sim ao chefe,
Que nunca faz justiça, sem que a venda.
Reforma um capitão e, no seu posto,
Encaixa, sem vergonha, a Tomazine,
Um moço, na milícia pouco esperto,
Que um ano inda não tinha de tenente.
Em que guerras andou, em que campanhas?
Quais as feridas, que no corpo mostra?
Aonde, aonde estão as diligências,
As grandes diligências arriscadas,
Que fez este mancebo, com que possa
Preferir aos antigos, destros cabos?
Ah! sim, eu já me lembro! Tem serviços,
Tem famosos serviços, na verdade:
A casa deste moço, bem que pobre,
É a casa somente, aonde o chefe
Entra em ar de visita, bebe e folga.
Aqui tens teu lugar, meu bom Lobésio;
Tu foste a capitão e tu passaste
Ao posto de major em breves meses.
Quais são os teus serviços? Quais? Responde.
Mas não, não me respondas; eu conheço
Que és tolo, que és brejeiro e, mais, que mandas
As redradas pedrinhas. Estes dotes
Te fazem, no conceito do teu chefe,
Um digno pai da pátria, herói do reino.
Também tu, ó Padela, te distingues
Na corja dos marotos. Tu conservas
De capitão o cargo, mas tu logras
O soldo de maior, e mais as honras.
Que foi que te fez digno de subires
À privança do chefe? Ah! sim, eu vejo
O teu merecimento! É coisa grande:
Ultrajas aos ministros e proteges
A todos os tratantes, que exercitam
O furto e o contrabando. Tu, piedoso,
Não queres ver perdido um só soldado;
Se algum, se algum consente que se escalem
Os vedados lugares, tu escreves
Ao sucessor honrado e lhe suplicas
Que parte não te dê, de um tal desmancho.
O teu fidalgo peito não se vence
Da sórdida avareza. Tu repartes
Os luzentes seixinhos c'o teu chefe,
E, bem que o seu Matúsio, em nome dele,
Os ache miudinhos, sempre servem.
Também tu, digno irmão, também cavalgas
O posto de tenente, por dizeres
Que honrado comandante, na parada,
Austero te corrige, por falares
Dos retos magistrados, sem respeito.
Que vezes a cachaça... Mas, amigo,
Deixemos de falar na paga tropa
E vamos a falar do grande corpo
Da gente auxiliar; aqui podemos
Acabar de dizer o mais que falta.
Tinha este continente, levantados,
De tropa auxiliar uns treze corpos.
O nosso chefe ainda não se farta:
Alista o povo inteiro, e, dele, forma
Inda mais de quarenta regimentos,
Mais faminto de ver galões e fardas
Que Midas de trocar em ouro puro
As coisas em que punha o torpe dedo.
O coronel, valente, agarra tudo
Quanto tem, de varão, a forma e traje;
Nem lhe obsta, Doroteu, que os seus soldados
Meninos inda sejam; que eles crescem,
E cresce, com os corpos, igualmente,
O santo amor das armas. Muitos, muitos,
Quando vão para a igreja receberem
As águas salvadoras do batismo,
Já vão vestidos com a curta farda.
Este mesmo costume tem, amigo,
O pago regimento. Apenas nasce
Aos cabos algum filho, logo, à pressa,
Lhe assenta o chefe, de cadete, a praça
Venturoso costume, que promete
Produzir, de cordeiros, tigres bravos!
Aníbal, Doroteu, desde menino
Com seu pai militou; talvez não fosse
O terror dos romanos, se passasse
A tenra, inda imberbe mocidade,
Entre os moles prazeres de Cartago.
Contudo, Doroteu, o céu permita
Que guerras não tenhamos;pois, a termos
Algum acampamento, que constranja
A saírem da praça os regimentos,
Há de haver bom trabalho em conduzir-se
O rancho de crianças em jacases.
Há-de, também, haver despesa grande
Em levar-se uma tropa de mulheres,
Que dêem o peito a uns e a outros papa.
Tu sabes, Doroteu, que as nossas tropas
De infantaria são, porem montada;
Que as leis do nosso reino não consentem
Que estas montadas tropas se componham
De membros, que não tenham certas rendas,
Com que possam manter os seus cavalos.
Ora ouve, Doroteu, quais são as posses
Dos míseros paisanos, que se alistam
Nos fortes regimentos: quase todos
Um sendeiro não têm, e muitos deles
Gemeram nas prisões, por não poderem
Ajeitar uma grossa e curta farda.
Eu topei Doroteu, por várias vezes,
Atrás de um regimento, os rapazinhos
Em veste e mais descalços: fina idéia
Em que deram os cabos, para verem
Se, à força de vergonha, se fardavam.
Eu sei, eu sei, amigo, que alguns destes,
Cansados de sofrerem mais opróbrios,
Fizeram fardamentos dos produtos
Dos únicos escravos, que venderam
E dos trastes alheios, que furtaram.
Perguntarás, agora, doce amigo:
"Aonde estão os ricos taverneiros?
Aonde os mercadores, que têm lojas
A que chamam de seco e de molhado?"
Aonde, Doroteu? Eu já t'o digo:
Estão, estão, também, nos regimentos,
Mas trazem nas direitas, que conservam
Inda lixosas peles, as bengalas.
Não rias, Doroteu, das nossas tropas.
De que gente formou um corpo invicto
O luso Viriato? Foi de moços
Criados, desde a infância, nas campanhas?
Não foi, meu Doroteu, foi de uns pastores,
De uns pastores incultos, que, animados
Do esforço do seu chefe, conseguiram
Vitórias singulares, contra um povo
Que ao mundo sujeitou, à força de armas.
Os homens, Doroteu, são todos fortes
Em cima das muralhas, que defendem
As chorosas mulheres e as fazendas,
Os ternos filhos e os avós cansados.
A desordem, amigo, não consiste
Em formar esquadrões, mas, sim, no excesso.
Um reino bem regido não se forma
Somente de soldados; tem de tudo:
Tem milícia, lavoura, e tem comércio.
Se quantos forem ricos se adornarem
Das golas e das bandas, não teremos
Um só depositário, nem os órfãos
Terão também tutores, quando nisto
Interessa, igualmente, o bem do império.
Carece a monarquia dez mil homens
De tropa auxiliar? Não haja embora
De menos um soldado, mas os outros
Vão à pátria servir nos mais empregos,
Pois os corpos civis são como os nossos,
Que, tendo um membro forte e os outros debeis,
Se devem, Doroteu, julgar enfermos.
É também, Doroteu, contra a policia
Franquearem-se as portas, a que subam
Aos distintos empregos, as pessoas
Que vêm de humildes troncos. Os tendeiros,
Mal se vêem capitães, são já fidalgos;
Seus néscios descendentes já não querem
Conservar as tavernas, que lhes deram
Os primeiros sapatos e os primeiros
Capotes com capuz de grosso pano.
Que império, Doroteu, que império pode
Um povo sustentar, que só se forma
De nobres sem ofícios? Estes membros
Não amam, como devem, as virtudes,
Seguem à rédea solta os torpes vícios.
Daqui saem os torpes malfeitores,
Os vis alcoviteiros, os perjuros,
Os famosos ladroes; numa palavra,
A tropa insultadora de vadios.
A este corpo imenso de milícia
Concede Fanfarrão as regalias
Que as nossas leis não dão aos bons vassalos,
Que chegam aos empregos mais honrosos,
Em paga de proezas e serviços.
Não quer, não quer o chefe, que aos seus cabos
Mandem citar os tristes acredores
Por ordem de justiça. Quais os grandes,
Que não vêm a juízo sem licença
Do príncipe, a quem servem, nesta terra,
Sem licença do chefe, não se citam
Os negros, os crioulos e os mulatos,
Mal vestem a fardinha e, muito menos,
Mal cingem, na cintura, honrosa banda.
Se alguém requer ao chefe que permita
Para isso faculdade, põe-lhe em cima
De humilde petição, que o suplicado
Componha ao suplicante o que lhe deve.
Se diz o suplicado ao suplicante
Que não lhe deve nada, foi-se embora
O sólido direito, que a policia
Do chefe não consente que se ponha
Aos seus oficiais, inda que sejam
Velhacos e ladrões, no foro, um pleito.
Já viste regalia igual a esta?
A pátria, Doroteu, concede aos nobres,
Que os postos exercitam, grossas rendas,
Com que possam pagar, aos mais vassalos
As coisas que lhes compram; não concede
Ao mesmo general que vista e coma,
À custa do suor dos outros homens.
E quando o rei não quer pagar a todos,
Com dinheiro contado, remunera
Os serviços com graças, mas daquelas
Que deixam sempre intacto o jus alheio.
Não são somente isentos da justiça
Os cabos valerosos. Onde habitam,
Se acolhem, Doroteu, os malfeitores,
E, quais antigas casas de fidalgos,
Ou famosos conventos, que, na porta,
Têm as grossas cadeias, onde pegam
Os míseros culpados, aqui todos
Se livram dos meirinhos, bem que sejam
Indignos, torpes réus de magistrado.
Se os ousados meirinhos entrar querem
Nas casas destes cabos, a que chamam
Militares quartéis, os fortes donos
Encaixam nas cabeças os casquetes,
Apertam as correias, põem as bandas
E, cingindo as torcidas, largas folhas.
Ultrajam com palavras a justiça,
Resistem, gritam, ferem, matam, prendem.
Os zelosos juízes punir querem
A injúria da justiça: formam autos,
Procedem às devassas, pronunciam,
E mandam que estes nomes se descrevam
Nos róis dos mais culpados. Mas, amigo,
De que serve fazer-se o que as leis mandam
Na terra, que governa um bruto chefe,
Que não tem outra lei mais que a vontade?
O chefe onipotente logo envia
Atrevidos soldados, que, chegando
À casa do escrivão, os nomes riscam
Do rol dos delinqüentes e lhe arrancam
Da fechada gaveta os próprios autos.
Ousado, indigno chefe, que governo,
Que governos nos fazes? A milícia
Ergueu-se para guarda dos vassalos,
E tu, e tu trabalhas, por que seja
A mesma que nos prive do sossego
Que, próvidas, nos dão as leis sagradas.
Agora, Doroteu, talvez trabalhes
Em achar o motivo por que o chefe
Concede tanto indulto aos seus soldados;
Pois ele, Doroteu, não é o enigma,
Que vem nos doces versos de Vergílio,
De umas flores, que têm de reis os nomes
Escritos sobre as folhas, e do sitio
De que três braças só do céu se avista.
O chefe, Doroteu, só quer dinheiro,
E, dando aos militares regalias,
Podem os grandes postos, que lhes vende,
Subir à proporção, também de preço.
Tu assim o conheces, Cata Preta,
Pois deste mil oitavas por trazeres
Lavrado castão de ouro sobre a cana.
Tu também, capanema, assim discorres,
Pois largaste seiscentas, por vestires
De capitão maior vermelha farda.
Todos assim o julgam. Ah! só pensa
De diversa maneira, aquele néscio
Que sofreu que Matúsio lhe rompesse
A passada patente à sua vista,
Por não largar, de luvas, os trezentos.
Dize-me, Doroteu, um chefe sábio
Levanta nas conquistas umas tropas,
Com que não pode a força do distante
Conquistador império? Infunde, inspira
Nos cabos tanto orgulho, que se atrevam
A resistir aos mesmos magistrados,
Que a pessoa do augusto representam?
Maldito, Doroteu, maldito seja
Um bruto, que só quer a todo custo,
Entesourar o sórdido dinheiro.

Copiosa multidão da nau-francesa (Caramuru) Frei de Santa Rita

[...]

XXXVII
Copiosa multidão da nau francesa
Corre a ver o espetáculo assombrada;
E, ignorando a ocasião de estranha empresa,
Pasma da turba feminil que nada.
Uma, que às mais precede em gentileza,
Não vinha menos bela do que irada;
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha à nau se apega ao leme.
[...]

Destes penhascos fez a natureza de Claudio Manuel da Costa

Destes penhascos fez a natureza
O berço em que nasci: oh! quem cuidara
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor, que vence os tigres, por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra meu coração guerra tão rara
Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano;

Vós que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei: que Amor tirano
Onde há mais resistência mais se apura.

Eu delirio, Getruria, eu desespero de Bocage

Eu deliro, Gertrúria, eu desespero
No inferno de suspeitas e temores.
Eu da morte as angústias e os horrores
Por mil vezes sem morrer tolero.

Pelo Céu, por teus olhos te assevero
Que ferve esta alma em cândidos amores;
Longe o prazer de ilícitos favores!
Quero o teu coração, mais nada quero.

Ah! não sejas também qual é comigo
A cega divindade, a Sorte dura.
A vária Deusa, que me nega abrigo!

Tudo perdi: mas valha-me a ternura
Amor me valha, e pague-me contigo
Os roubos que me faz a má ventura

Epigrama de Bocage

1

*

"Lavrou chibante receita

Um doctor com todo o esmero:

era para certa moça,

Que ficou sã como um pêro.

*

--Tão cedo. É milagre!--assenta

A mãe, que de gosto chora.

--Minha mãe, não é milagre:

Deitei o remédio fora!..."

*

*

2

*

"Um médico, ressentido

De certo seu ofensor,

Ante um amigo exclama,

Todo abrasado em furor:

*

--Para punir este indigno,

Este vil, tomara um raio!

Acode o outro:--Há um meio

Muito mais fácil: curai-o!..."

*

*

3

*

"Estando enfermo um poeta

Foi visitá-lo um doctor,

E em rigorosa dieta,

Logo, logo o mandou pôr.

*

--Regule-se, coma pouco

(diz-lhe o médico eminente).

--Ai Senhor! (acode o louco)

Por isso é que estou doente."

De um varão em mil casos agitados (Caramuru) de Frei de Santa Rita

I

De um varão em mil casos agitado,
Que as praias discorrendo do Ocidente,
Descobriu o Recôncavo afamado
Da capital brasílica potente:
Do Filho do Trovão denominado,
Que o peito domar soube à fera gente;
O valor cantarei na adversa sorte,
Pois só conheço herói quem nela é forte.

II

Santo Esplendor, que do grão-Padre manas
Ao seio intacto de uma Virgem bela;
Se da enchente de luzes Soberanas
Tudo dispensas pela Mãe Donzela;
Rompendo as sombras de ilusões humanas,
Tu do grão caso! a pura luz revela
Faze que em ti comece, e em ti conclua
Esta grande Obra, que por fim foi tua.

III
E vós, Príncipe excelso, do Céu dado
Para base imortal do Luso Trono;
Vós, que do Áureo Brasil no Principado
Da Real sucessão sois alto abono:
Enquanto o Império tendes descansado
Sobre o seio da paz com doce sono,
Não queirais de dignar-vos no meu metro
De pôr os olhos, e admiti-lo ao cetro.

A Serpe, que adornando várias cores de Bocage

A Serpe, que adornando várias cores,
Com passos mais oblíquos, que serenos,
Entre belos jardins, prados amenos,
É maio errante de torcidas flores;

Se quer matar da sede os desfavores,
Os cristais bebe co'a peçonha menos,
Porque não morra c'os mortais venenos,
Se acaso gosta dos vitais licores.

Assim também meu coração queixoso,
Na sede ardente do feliz cuidado
Bebe c'os olhos teu cristal fermoso;

Pois para não morrer no gosto amado,
Depõe logo o tormento venenoso,
Se acaso gosta o cristalino agrado.

Já rompe, Nise, a matutina aurora de Claudio Manuel da Costa

Já rompe, Nise, a matutina aurora
O negro manto, com que a noite escura,
Sufocando do Sol a face pura,
Tinha escondido a chama brilhadora.

Que alegre, que suave, que sonora,
Aquela fontezinha aqui murmura!
E nestes campos cheios de verdura
Que avultado o prazer tanto melhora!

Só minha alma em fatal melancolia,
Por te não poder ver, Nise adorada,
Não sabe inda, que coisa é alegria;

E a suavidade do prazer trocada,
Tanto mais aborrece a luz do dia,
Quanto a sombra da noite lhe agrada.

É a fama então que a mltidão formosa (Episódio da morte da Moema) de Frei de Santa Rita Durão

[...]
XXXVIÉ fama então que a multidão formosa
Das damas que Diogo pretendiam,
Vendo avançar-se a nau na via undosa,
E que a esperança de o alcançar perdiam,
Entre as ondas com ânsia furiosa
Nadando o esposo pelo mar seguiam
E nem tanta água, que flutua vaga,
O ardor que o peito tem, banhando apaga.
[...]

Madrigal XVIIII de Silva Alvarenga

Suave Agosto as verdes laranjeiras
Vem feliz matizar de brancas flores,
Que, abrindo as leves asas lisonjeiras,
Já Zéfiro respira entre os Pastores
Nova esperança alenta os meus ardores
Nos braços da ternura.
Ó dias de ventura,
Glaura vereis à sombra das mangueiras!
Suave Agosto as verdes laranjeiras
Co'a turba dos Amores
Vem feliz matizar de brancas flores.

Minha bela Marilia, tudo passa (Lira séc XIV) de Tomas Antonio Gonzaga

Minha bela Marília, tudo passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
Estão os mesmos Deuses
Sujeitos ao poder ímpio Fado:
Apolo já fugiu do Céu brilhante,
Já foi Pastor de gado.
A devorante mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem, que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte.
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos
Ferro do torto arado.
Ah! enquanto os Destinos impiedosos
Não voltam contra nós a face irada,
Façamos, sim façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
Um coração, que frouxo
A grata posse de seu bem difere,
A si, Marília, a si próprio rouba,
E a si próprio fere.

Ornemos nossas testas com as flores.
E façamos de feno um brando leito,
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos Amores.
Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo, que se passa,
Também, Marília, morre.

Com os anos, Marília, o gosto falta,
E se entorpece o corpo já cansado;
triste o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho sempre alegre salta.
A mesma formosura
É dote, que só goza a mocidade:
Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
Mal chega a longa idade.

Que havemos de esperar, Marília bela?
Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
Ah! Não, minha Marília,
Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças
E ao semblante a graça.

Quem deixa o trato pastorial amado de Claudio Manuel da Costa

[...]
XIV

Quem deixa o trato pastoril, amado,
Pela ingrata, civil correspondência,
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.

Que bem é ver nos campos, trasladado
No gênio do Pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Ver sempre o cortesão dissimulado!

Ali respira Amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.

Ali não há fortuna que soçobre;
Aqui quanto se observa é variedade:
Oh! ventura do rico! oh! bem do pobre!


[...]

Feliz e amor de Bocage

Ó tu, consolador dos malfadados,
Ó tu, benigno dom da mão divina,
Das mágoas saborosa medicina,
Tranquilo esquecimento dos cuidados:
Aos olhos meus, de prantear cansados,
Cansados de velar, teu voo inclina;
E vós, sonhos d’amor, trazei-me Alcina,
Dai-me a doce visão de seus agrados:
Filha das trevas, frouxa sonolência,
Dos gostos entre o férvido transporte
Quanto me foi suave a tua ausência!
Ah!, findou para mim tão leda sorte;
Agora é só feliz minha existência
No mudo estado, que arremeda a morte.


Ó Céus! Que sinto n’alma! Que tormento!
Que repentino frenesi me anseia!
Que veneno a ferver de veia em veia
Me gasta a vida, me desfaz o alento!
Tal era, doce amada, o meu lamento;
Eis que esse deus, que em prantos se recreia,
Me diz: >Insano! Eu bem te vi dentre a luz pura
De seus olhos travessos, e cum tiro
Puni tua sacrílega loucura:
>>De morte, por piedade hoje te firo;
Vai pois, vai merecer na sepultura
À tua linda ingrata algum suspiro.>>

Leia a postariedade, ó patria Rio de Claudio Manuel da Costa

Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado;
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias
Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.

Porém o destro Caitutu, que treme (A morte de Lindóia - O Uruguai) de Basilio da Gama

[...]

E nem se atrevem a chamá-la e temem

Que desperte assustada e irrite o monstro,

E fuja, e apresse no fugir a morte.

Porém o destro Caitutu, que treme

Do perigo da irmã, sem mais demora

Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes

Soltar o tiro, e vacilou três vezes

Entre a ira e o temor. Enfim sacode

O arco e faz voar a aguda seta,

Que toca o peito de Lindóia e fere

A serpente na testa, e a boca e os dentes



Deixou cravados no vizinho tronco.

[...]